Se não existem duas pessoas iguais, porque é que os tratamentos são os mesmos? A medicina de precisão está a quebrar paradigmas com recurso às últimas inovações tecnológicas. Descubra o que significa e quais as suas implicações práticas.
O amanhecer do século XX encontrou Karl Landsteiner no sítio de sempre, o laboratório da Universidade de Viena. Entregue à sua investigação, o médico e biólogo austríaco lutava para perceber porque algumas transfusões de sangue eram bem-sucedidas e outras não. O cientista procurava a resposta a uma questão simples: se cada pessoa é diferente, porque é que os tratamentos são iguais?
Anos de investigação culminariam na identificação do sistema do grupo sanguíneo ABO, em 1901, um dos primeiros exemplos de medicina de precisão e de reconhecimento das diferenças biológicas de cada paciente. Pela descoberta, viria a receber o Prémio Nobel da Medicina em 1930.
Até esse momento, pacientes diferentes diagnosticados com uma doença recebiam o mesmo tratamento, sem que se percebesse exatamente porque é que funcionava nuns casos e não noutros, ou porque se obtinham taxas de sucesso muito variáveis. Hoje, mais de 100 anos depois de pioneiros como Landsteiner terem dado os primeiros passos na medicina de precisão, uma série de inovações promete agora dar novo fôlego às suas descobertas.
O que é a medicina de precisão?
A medicina de precisão altera o paradigma da medicina tradicional, cujos tratamentos são projetados para ajudar mais pessoas do que as que prejudicam, mas que podem não funcionar para um indivíduo específico. A abordagem reconhece que cada pessoa possui características moleculares distintas e que estas têm um impacto significativo na saúde.
Avanços em áreas como a sequenciação rápida de DNA, engenharia de tecidos, reprogramação celular ou edição de genes, acompanhados de maior investimento público e da digitalização da saúde, relançaram a importância da medicina de precisão.
Fonte: APAH
Graças a estas inovações, investigadores de todo o mundo estão a criar ferramentas que seriam inimagináveis há apenas alguns anos. Em 1990, quando o Projeto do Genoma Humano foi lançado, foram necessários 300 milhões de euros para sequenciar um genoma. Hoje, a sequenciação custa algumas centenas de euros e pode ser pedida online. Os equipamentos mais recentes podem produzir resultados num dia.
A tecnologia, combinada com a análise molecular, dá destaque a variações bioquímicas surpreendentes que tornam cada corpo humano único. O resultado é o desenvolvimento de tratamentos de precisão para indivíduos ou populações de pacientes, com características comuns, ou seja, fenótipos, direcionando um tratamento específico para cada grupo.
Tal deixa para trás uma abordagem de “tentativa e erro” concebendo um tratamento específico para um determinado tipo de paciente, no momento certo. A medicina de precisão facilita assim a administração de um tratamento, pois a entidade médica já tem a capacidade de reconhecer a que grupo o paciente pertence.
Aplicações práticas da medicina de precisão
A medicina de precisão tem em consideração a variabilidade genética, ambiente e estilo de vida de cada pessoa para implementar novos mecanismos de diagnóstico, de tratamento de doenças, desenvolvimento de medicamentos e também de redução de custos para as organizações do ecossistema da Saúde. Estas são as principais aplicações práticas.
Diagnóstico de precisão
O diagnóstico clínico é uma das áreas mais beneficiadas pela medicina de precisão, tanto a nível do resultado como da experiência do paciente. Torna possível, por exemplo, selecionar casos em que se podem aplicar métodos menos invasivos, como a endoscopia digestiva não invasiva.
Para o conseguir, a medicina de precisão recorre, entre outras ferramentas, a biomarcadores. Os biomarcadores ou marcadores biológicos são parâmetros que podem ser medidos e indicam a ocorrência de uma determinada função normal ou patológica de um organismo ou uma resposta a um agente farmacológico.
Os biomarcadores podem ser de ordem:
- Fisiológica: função dos órgãos;
- Física: alterações de características em estruturas biológicas;
- Histológica: amostras de tecido obtidas por biopsia;
- Anatómica.
Estes marcadores biológicos tornam possível proceder à estratificação dos indivíduos em subpopulações que divergem na resposta ao tratamento. Desta forma, é possível diagnosticar, monitorizar ou guiar a decisão terapêutica.
Fonte: Estratificação de pacientes usando biomarcadores genéticos e genómicos.
Terapias dirigidas
A medicina de precisão pretende resolver um problema concreto: a necessidade de fazer diagnósticos mais precisos e a resposta ineficaz dos atuais tratamentos. A diabetes, por exemplo, apresenta taxas de ineficácia acima de 40%, com perdas de qualidade de vida do doente. A sua heterogeneidade tem sido reconhecida e começam-se a distinguir diferentes classes de diabetes tipo 2 com o objetivo de dirigir melhor os tratamentos. Outras, como a artrite, revelam uma ineficácia na ordem dos 50%, percentagem que em oncologia é de uns impressionantes 75%.
Existem pelo menos cem fármacos que, se administrados a pessoas com variantes genéticas específicas, poderão não atuar da forma normalmente prescrita, problema que pode ser fatal.
No caso da oncologia, por exemplo, a quimioterapia convencional atua sobre as células em rápida divisão, não distinguindo entre células saudáveis e cancerígenas. A quimioterapia pode causar efeitos secundários notórios, por haver células saudáveis que sofrem o efeito citotóxico do tratamento e são destruídas. As novas terapias dirigidas atacam o tumor com maior precisão e especificidade, podendo obter um melhor resultado com menos efeitos secundários.
Áreas como as terapias baseadas em mutações, imunoterapias e terapia celular são alguns dos principais exemplos associados a novos tratamentos de medicina de precisão.
Redução de custos
A Medicina de Precisão visa melhorar a rapidez e eficácia dos diagnósticos, evitando a prescrição de terapêuticas desnecessárias e dispendiosas. A nível económico, esta mudança representa uma utilização mais racional e eficiente dos recursos, diminuindo o desperdício e custos associados a tratamentos ineficazes e respetivos efeitos secundários.
Mais prevenção, menos reação
Ao abandonar a abordagem de “one size fits all” para abraçar a medicina de precisão, os prestadores de cuidados podem ser mais proativos e menos reativos. Com base no conhecimento obtido a partir do mapa genético, contexto e estilo de vida de cada paciente, será possível desenvolver uma maior compreensão da doença a nível molecular. A partir daí, reduz-se o risco de agravamento ao apresentar aos pacientes um tratamento ou estratégias preventivas.
Desafios da medicina de precisão
Apesar da promessa da medicina de precisão, subsistem desafios aliados a este processo:
- Desenvolvimento e validação de algoritmos que possam ser aplicados em ambiente clínico;
- Necessidade de recursos significativos para melhorar a coleta de dados, armazenamento, compartilhamento e integração com EHR (registos eletrónicos de saúde);
- Incorporação de informações genómicas ao tratamento em sistemas de saúde;
- Análise de possíveis constrangimentos éticos, de privacidade e segurança dos dados, devido à recolha, análise e processamento de diversos dados pessoais;
- Garantia do sucesso da medicina de precisão Qualidade dos dados subjacentes, de modo a garantir o sucesso da integração da informação.
Através do Big Data é possível integrar e analisar um elevado volume de dados disponíveis em diversas fontes de informação de forma rápida e eficaz. Já a inteligência artificial (IA) disponibiliza sistemas mais inteligentes e capacitados para uma melhor deteção e suporte à tomada de decisão associada à saúde de cada pessoa.
Para isso, é necessário integrar dados dispersos em inúmeras fontes de dados e em silos (hospitais, clínicas, empresas farmacêuticas, laboratórios). Como tal, antes de ser possível aplicar algoritmos a informação real, são necessárias plataformas integradoras para agregar a informação e posteriormente analisá-la.
Estas plataformas vão ser essenciais na captura da informação necessária para potenciar a medicina de precisão em ambiente clínico e implicarão a colaboração dos diversos parceiros do sector da saúde.
Formação dos profissionais de saúde
Para que a alteração no paradigma clínico ocorra, não basta o desenvolvimento de tecnologias disruptivas, mas também a transição para a prática clínica. Para isso, será necessário apostar em programas de formação dos profissionais, bem como dos restantes decisores em saúde que influenciarão a adoção e acesso às mesmas.
Só assim é possível garantir que os profissionais estão envolvidos e devidamente capacitados para promoverem da melhor forma a utilização de métodos de diagnóstico e tratamento inovadores.